Todas as noites, uns segundos
antes da meia-noite, o mundo dissipa-se à volta dela. Parada em frente ao
relógio, sustém a respiração como se mergulhasse num mar de medo e, de olhos
ofuscados pela água salgada, fica apenas a ver o ponteiro a percorrer o trajecto
até àquela badalada que lhe permite voltar à superfície e respirar.
Abre a janela, olha para o Céu e procura a Lua, grata por estar ali, grata por estar livre, ainda que apenas fisicamente. Como se se pudesse abrir uma porta no tempo durante aqueles segundos antes da última badalada e o monstro a voltasse a apanhar.
Há portas no tempo que demoram muito a fechar, janelas que demoram muito a abrir e ponteiros que, em vez de tempo, apontam dolorosos acontecimentos.
As memórias ainda a cercam, ela quer esquecer, mas cada vez que tenta, a lembrança traz a dor como um punhal afiado no peito, ainda mais forte. Talvez seja melhor não tentar esquecer, deixar que o tempo apague sozinho as recordações... Durante anos culpou-se, porque não sabia a quem culpar, mas agora percebe que não podia ter culpa daquilo que aquele monstro lhe fez, destruindo para sempre uma parte da sua vida, uma parte que ficou inacabada, desmoronada e abandonada para trás... Uma parte dela que mesmo assim era parte dela, e ele, aproveitando-se de toda a sua inocência, arrancou-lha cruelmente...
Esse mesmo monstro que não teve castigo, esse mesmo monstro que a fez correr de medo durante anos, que a fez ter pesadelos à noite, que a fez paralisar de terror na rua, esse mesmo monstro que a polícia ignorou, esse mesmo monstro que podia fazer tudo... Destruiu um pedaço da vida dela, e, a parte que não destruiu, ficou com uma sombra que nunca desaparecerá.
Essa sombra precisa de luz.
À meia-noite, muitas vezes, apagam-se memórias que não se querem esquecer e recordam-se memórias que se querem apagar. O ponteiro gira sempre para o mesmo lado, não há nada a fazer, senão esperar, acreditar, e um dia quem sabe, o ponteiro gire sem que se dê conta e o tempo volte a passar sem o barulho do passado, sem o som do ponteiro, sem o medo.
Como se o tempo estivesse impregnado na pele dela, como se o tic tac fosse tudo o que conseguisse ouvir dentro de si, só à espera do dia, do momento em que simplesmente se poderá libertar, abrir os braços, partir o frasco onde está fechada, e num ápice mover todas as partículas da atmosfera à sua volta, fazer voar para longe todos os cacos de vidro que a mantiveram presa… Voltar a ouvir o som do vento, o som do mar, o som da vida, deixar o ponteiro à meia-noite esquecido para sempre, e, finalmente, ensurdecer o tic tac, com o pulsar do seu próprio coração.
Sandra Reis
Abre a janela, olha para o Céu e procura a Lua, grata por estar ali, grata por estar livre, ainda que apenas fisicamente. Como se se pudesse abrir uma porta no tempo durante aqueles segundos antes da última badalada e o monstro a voltasse a apanhar.
Há portas no tempo que demoram muito a fechar, janelas que demoram muito a abrir e ponteiros que, em vez de tempo, apontam dolorosos acontecimentos.
As memórias ainda a cercam, ela quer esquecer, mas cada vez que tenta, a lembrança traz a dor como um punhal afiado no peito, ainda mais forte. Talvez seja melhor não tentar esquecer, deixar que o tempo apague sozinho as recordações... Durante anos culpou-se, porque não sabia a quem culpar, mas agora percebe que não podia ter culpa daquilo que aquele monstro lhe fez, destruindo para sempre uma parte da sua vida, uma parte que ficou inacabada, desmoronada e abandonada para trás... Uma parte dela que mesmo assim era parte dela, e ele, aproveitando-se de toda a sua inocência, arrancou-lha cruelmente...
Esse mesmo monstro que não teve castigo, esse mesmo monstro que a fez correr de medo durante anos, que a fez ter pesadelos à noite, que a fez paralisar de terror na rua, esse mesmo monstro que a polícia ignorou, esse mesmo monstro que podia fazer tudo... Destruiu um pedaço da vida dela, e, a parte que não destruiu, ficou com uma sombra que nunca desaparecerá.
Essa sombra precisa de luz.
À meia-noite, muitas vezes, apagam-se memórias que não se querem esquecer e recordam-se memórias que se querem apagar. O ponteiro gira sempre para o mesmo lado, não há nada a fazer, senão esperar, acreditar, e um dia quem sabe, o ponteiro gire sem que se dê conta e o tempo volte a passar sem o barulho do passado, sem o som do ponteiro, sem o medo.
Como se o tempo estivesse impregnado na pele dela, como se o tic tac fosse tudo o que conseguisse ouvir dentro de si, só à espera do dia, do momento em que simplesmente se poderá libertar, abrir os braços, partir o frasco onde está fechada, e num ápice mover todas as partículas da atmosfera à sua volta, fazer voar para longe todos os cacos de vidro que a mantiveram presa… Voltar a ouvir o som do vento, o som do mar, o som da vida, deixar o ponteiro à meia-noite esquecido para sempre, e, finalmente, ensurdecer o tic tac, com o pulsar do seu próprio coração.
Sandra Reis
Há coisas que, por mais que tentemos, não desaparecem do nosso pensamento, porque nos marcaram para sempre. E essas lembranças teimam me surgir quando relaxamos.
ResponderEliminarFantástico! Adorei ler
A escrita é um sonho lindo.
ResponderEliminarBeijinhos
Não é fácil esquecer e... bem difícil com certos factos conviver! Gostei de ler... Bj
ResponderEliminarGostei bastante do que li.
ResponderEliminarUm abraço e boa Primavera.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros
Um texto intenso, doloroso, e que infelizmente será realidade para muitas mulheres.
ResponderEliminarAbraço
Bom dia, querida amiga Sandra!
ResponderEliminarPara você, com carinho:
http://www.escritosdalma.com.br/2019/03/alvura-paz-de-primavera.html?m=1
Que uma vida nova se descortine para a amiga!
Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem
🙏😘🌷
Olá Sandra!
ResponderEliminarAdorei, um texto forte e bonito ao mesmo tempo.
Beijinho
Por mais que o desejemos e os ponteiros do relógio avancem, há memórias que ficam marcadas na nossa pele, para o bem e para o mal, há que saber viver com as marcas que elas nos deixam. Beijinho Sandra
ResponderEliminarDeliciei-me a ler este lindo texto ao som da primeira música
ResponderEliminarObrigada
Bonito texto!
ResponderEliminarNo jardim do Gui...
Beijo e excelente tarde!
Uma vida ensombrada por acontecimentos tristes não pode impedir-nos de sentir o gosto de viver, se assim o quisermos... mas também é preciso que na balança entrem outras situações mais positivas...
ResponderEliminarBom final de dia.
Gostei de ler o belo texto!
ResponderEliminarBjs
Mt bonito o teu texto com mt sentimento bjs
ResponderEliminarUma abordagem superior de um tema que é um verdadeiro flagelo social. Gostei imenso, os meus aplausos por este excelente texto.
ResponderEliminarSandra, um bom fim de semana.
Beijo.
Olá, Sandra
ResponderEliminarUm texto que brilha na noite escura, como um lampião.
Sem dizer a palavra explicitamente consegue fazer chegar
até nós todo esse sofrimento, fazendo-nos comungar da
tristeza e desespero da personagem.
Parabéns.
Bj
Olinda
O teu post é fantástico...de facto esquecer não é fácil.
ResponderEliminarBeijinho e um bom fim-de-semana
:)
Como esta mulher, há imensas sofrendo e desejando o mesmo. Um dia, acontecerá, mas as mentalidades levam séculos a modificarem-se.
ResponderEliminarBeijinhos e bom fim de semana.
Lindo...lindo..lindíssimo, este texto. :))Bom dia.
ResponderEliminarHoje:- Por ti, todos os banhos valem a pena. | Poetizando e Encantando |
Bjos
Votos de um óptimo Domingo.
Bom dia, Sandra
ResponderEliminarEscrever assim não é para todos, é um dom que nasce com a pessoa e que, com vontade e querer se pode aperfeiçoar ainda mais (Atenção! Não estou a pôr defeitos! Apenas estou a prever que a sua escrita vai melhorar a cada dia que passa...) - Esta é a apreciação "estrutural".
Quanto ao conteúdo - A mensagem chega ao leitor. Momentos de angústia que se vivem num minuto e parecem durar eternidades. Assim acontece quando o sofrimento é grande. E há recordações que são assim, como um punhal sempre apontado ao coração, que num segundo penetra mesmo e nos faz reviver tempos muito dolorosos.
Mas... a esperança aparece no final, como que a dizer-nos que é sempre a última a morrer.
Classificação: Excelente!!!
Dias felizes e boas escritas lhe desejo.
Votos de um Domingo feliz
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS
Un brano intenso, e di magnifica lettura, che ho molto apprezzato per il suo intenso significato
ResponderEliminarBuona settimana e un saluto,silvia
Um texto muito bem escrito e cheio de motivos para reflexão…
ResponderEliminarUma boa semana.
Um beijo.
Assustador e impressionante, Sandra; marcante. Ótimo texto, parabéns! Boa semana.
ResponderEliminarEn el silencio de la noche brotan los más buenos sentimientos y acuden los más buenos momentos vividos durante el día.
ResponderEliminarBesos
O tão famigerado tema da pedofilia . Em Portugal começou nos Casapianos e foi a ponta de um gigante iceberg. Há violações no seio da família, normalmente é o pai, o avô o tio, o primo, o padrasto, um conhecido e amigo da família da criança, membros do clero, figuras públicas que abusam da fama e da glória que conquistaram.Enfim, o que é isto? Uma epidemia sem precedentes? Esta vaga cresce a cada dia que passa. Sem fim à vista. Se uma vacina resolvesse a questão.... as pessoas não apostam na vigilância, não apostam na denúncia, não apostam na saúde mental. Porque a vítima é a criança a quem se rouba a inocência, cria-se um trauma que não se apaga jamais.
ResponderEliminarA pedofilia é uma doença e um crime. Aconselho uns e outros a um acompanhamento psicológico.
Beijinho
Ao longo da vida perpetuam "marcos" para o melhor, mas por vezes também para o pior.
ResponderEliminarO melhor é mesmo deixar que o tempo apague as recordações, ou pelo menos não as tenha tão vivas.
Bjs
😉
Olhar D'Ouro - bLoG
Olhar D'Ouro - fAcEbOOk
Olhar D'Ouro – yOutUbE * Visitem & subcrevam
sentimento e sensibilidade bem misturados, neste magnifico texto...
ResponderEliminarBoa semana
Beijo