Este blogue é um ponto de encontro com amigos desconhecidos que se reconhecem nas palavras e nos gestos, aqueles por vezes tão comuns que deixamos de reparar, até alguém nos voltar a falar deles, como se fosse a primeira vez.

Música

14 de junho de 2018

Existência











O tempo passa
Como a espuma
Que se esfumaça
Um dia criança
Cheia de sonhos
E esperança

Onda do mar
Um dia a partir
No outro a voltar
Adolescente
Apaixonado
Rio afluente
Reencontrado

Caminhos cruzados
Abraços apertados
Adulto perdido
No interior
Descobre o sentido
Encontra o amor

Crescem os ramos
Da essência
Até ao esplendor
Pousam-se as gotas
E na árvore da existência
Floresce a flor


S. R.

8 de junho de 2018

Um reencontro tão esperado


Às vezes reencontramos pessoas que não vemos há anos, às vezes reencontramos sítios por onde outrora estivemos, outras vezes reencontramos coisas, muito antigas, às vezes esquecidas até e que nos trazem memórias que não sabíamos que estavam guardadas, por vezes reencontramos melodias, músicas ou sons, mesmo que demasiados curtos, mas que não ouvíamos desde pequenos e nos reconfortam, por vezes são cheiros, aromas que nos fazem lembrar de momentos ou pessoas, e nos fazem reviver memórias que não vivíamos há décadas.

Em Dezembro fui à baixa do Porto, como lhe chamam por aqui, estava um frio normal de Outono, muitas folhas secas no chão sossegadas, árvores quase totalmente despidas, crianças de casacos quentes e gorros coloridos, enfeites luminosos nas ruas, árvores de natal nas montras das lojas, um violinista na rua de Santa Catarina e o cheiro a castanhas, o fumo a dançar pela rua ao som do violino, as gargalhadas ao fundo de grupos de amigos, uma bicicleta a passar nas ruas de paralelo, os sons vindos de dentro das lojas que confluíam na rua, juntando-se à dança do fumo das castanhas assadas ao som das cordas do violino, e sol, imenso sol, quente e luminoso a irradiar por todo o lado.

 


E foi quando a reencontrei, aquela memória de infância tão longínqua e perdida, aquela memória que veio ter comigo no cheiro e na cor, todos misturados, ali, naquele momento, a memória da minha mãe, ainda com os cabelos todos pretos, a segurar na minha mão, ainda pequenina, enquanto caminhávamos naquela mesma rua, que parecia tão grande, tão diferente, e tudo à minha volta era tão imensamente misterioso, onde havia um carrinho de castanhas como aquele, com o mesmo fumo no ar, o mesmo som, o mesmo cheiro das castanhas assadas na rua, do jornal onde elas se aninhavam. Seguindo o trilho dessa antiga memória, decidi procurar algo ainda mais antigo, que nunca mais encontrara, os biscoitos da Laurindinha, a minha Ama, aquela segunda mãe que cuidou de mim, me mimou, sacrificou por mim também, me amou todos os dias como se fosse do próprio sangue dela, uma segunda mãe que nunca esquecerei. O leite-creme dela nunca mais poderei ter, só ela o sabia fazer, mas ainda havia algo que talvez pudesse ter, as rosquinhas que ela me dava tantas vezes, que me lembro que comprava na baixa do Porto quando eu era pequenina.

Segui então para a rua formosa e ia decidida a descobrir os biscoitos. Entrei em algumas lojas antigas mas não vi o que procurava, por fim entrei na Mercearia do Bolhão, uma loja centenária e linda, cheia de história e sente-se-lhe o cheiro fantástico. Mas, mais uma vez, procurei e não vi nada já sabia que vinha outra vez sem descobrir os biscoitos. Como poderia eu encontrar algo que tinha visto pela última vez há trinta anos? O senhor perguntou-me se procurava algo, eu acabei por lhe contar a história, que eram castanhos e tinham um buraquinho no meio, eu tinha a certeza porque lembrava-me bem de enfiar o dedo e girá-las. O senhor aparece-me com um pacote branco na mão e diz "Só pode ser isto". Peguei na saca sem muita esperança mas agradeci-lhe na mesma, paguei e saí. Já há uns meses tinha comprado umas de coco num hipermercado e não me tinha sabido a nada parecido. Abri o pacote céptica e tirei um, cheirei, senti imediatamente um arrepio de memórias a subir pelo meu corpo todo, quando trinquei o biscoito e senti o sabor a dissolver-se na minha língua, tal e qual como eu me lembrava, as lágrimas vieram visitar os meus olhos, fiquei tão feliz, parecia uma criança de 5 anos. E naquele momento eu podia ouvir a voz da minha ama, o som da colher na mão morena a mexer o chá de cidreira, o sorriso enorme que ela tinha. Trouxe os biscoitos para casa e guardei-os, como quem guarda as memórias para não as gastar todas duma vez e, de vez em quando, vou buscar um, sinto-lhe o sabor devagarinho e fecho os olhos, só para voltar a vê-la a sorrir para mim mais uma vez.