Este blogue é um ponto de encontro com amigos desconhecidos que se reconhecem nas palavras e nos gestos, aqueles por vezes tão comuns que deixamos de reparar, até alguém nos voltar a falar deles, como se fosse a primeira vez.

Música

22 de outubro de 2020

Volta para mim - I



Esta não é uma história de ficção como as outras,

porque em algum lugar do Mundo, ela realmente aconteceu.

S.R.

 

Eram amigos desde os 12 anos. Desde que se conheceram na mesma turma. Amigos daqueles que brincam juntos o dia todo, na escola, em casa, na rua. Sabiam os segredos um do outro. Tinham sempre histórias para contar. Cresceram juntos, e, quando se tornaram adolescentes, um sentimento forte começou a despontar no coração deles, emoções que não sabiam explicar.

Os corações palpitavam sempre que se aproximavam, os olhos brilhavam quando se cruzavam, havia momentos em que ficavam presos no olhar do outro, momentos em que o tempo parecia parar… À volta deles apenas a imensidão do espaço, o silêncio e o clarão que deles emergia.

As brincadeiras mudaram, as conversas tornaram-se mais sérias, e agora, não estavam limitados aos jardins das casas deles. Passeavam à beira-mar, caminhavam pelo parque, escondiam-se atrás das árvores, íam juntos à biblioteca, liam deitados no jardim, corriam pela praia ao fim da tarde, ouviam música na areia durante o pôr-do-sol, tocavam, cantavam, riam, e tinham o hábito de escrever bilhetes um ao outro e escondê-los para o outro encontrar.

Sem dizerem um ao outro o que sentiam, eles sabiam-no, seria impossível escondê-lo mais tempo, havia um campo magnético à volta dos dois, uma força que os impelia a tocar no outro, a abraçarem-se…

Numa tarde, quando ela se escondia dele no jardim, rindo baixinho, o coração começou a bater mais forte, sentia a respiração a acelerar enquanto tentava não rir alto, e não era por ter corrido, mas porque sabia que a qualquer momento ele ia aparecer de repente, ia surpreendê-la, as mãos dele iam tocar nela, os olhos dele iam estar perto dos dela, o mundo ia girar alguns segundos na cabeça dela, o peito ia estalar como chamas a crepitar, e foi verdade, só que o que ela não adivinhava é que ele a agarraria ali e a beijaria, mesmo ali, atrás da árvore, uma árvore muito especial, uma árvore antiga, muito antiga. Foi ali que deram o primeiro beijo, um sítio que se tornaria intemporal para eles.

Não podiam estar mais felizes, eram perfeitos um para outro, o primeiro amor não tem queixas, não vê condições, é puro, leal, brilhante. Foram semanas incríveis. Mas para tudo parece haver sempre um tempo, e o destino decidiu afastá-los. Dum dia para o outro, ele foi obrigado a ir para a guerra, longe de casa, uma guerra que não era dele, nem de ninguém que a combatia. Mas, apesar disso, ela acreditava que havia uma razão para tudo, que o destino deles estava timbrado nas estrelas, e havia um plano para ficarem juntos para sempre.

Quando se despediram, ele deu-lhe um beijo longo e intenso, e colocou-lhe um bilhete na mão. Os olhos de ambos brilhavam como cristal líquido. Enquanto ele desaparecia ela acenava adeus com o coração rasgado ao meio… Já não se sentia inteira… Nunca mais se voltaria a sentir inteira se ele não voltasse… Quando ele desapareceu ela olhou para a mão e abriu o bilhete.

 

Aconteça o que acontecer, o que nos une é eterno.

 

Ela guardou o bilhete como se fosse um pedaço de vida onde se poderia agarrar enquanto estaria longe dele.

Durante meses trocaram cartas. Algumas demoravam mais, algumas ficavam sem resposta. Mas um dia elas pararam de chegar…

O que ela mais temia estava a acontecer. Passaram meses… Meses de silêncio. Os pais dele deixaram de ter notícias também, não havia mais postais, cartas ou telegramas. Não sabiam dele. Como sobrevive o coração duma mãe e dum pai quando um filho desaparece no meio duma guerra, distante, noutro país, sem sequer o poderem procurar? Como poderia alguém ter o direito de arrancar o filho aos pais e levá-lo para uma guerra? Obrigá-lo a usar armas que ele nunca vira ou tocara, usá-lo como um objecto bélico para atingir uma vitória com fins que nada diziam à dignidade e à honra.

Seis anos depois, ninguém sabia se estava vivo ou onde estaria… Ninguém sabia…

O peito dela doía, chorava todas as noites, se houvesse ao menos uma estrela no céu que brilhasse naquele momento para lhe dizer se ele estava ali a olhar para ela… Mas nem um sinal… Como poderia suportar tantos anos à espera duma resposta?… O bilhete que ele lhe deu no dia em que partiu, tinha as marcas dos anos nos vincos, algumas letras já não se liam bem, mas era a única coisa que ela tinha dele, que lhe devolvia a memória doce e intensa do beijo que ele lhe deu quando lhe pôs o bilhete na mão.

Tinham passado seis anos sem notícias, não parecia possível ele voltar mas ela não conseguia largar a esperança.

Um dia os pais dele bateram-lhe à porta. Ela ficou surpreendida, a mãe dele abraçou-a, choraram as duas dentro daquele abraço, era óbvio que a dor estava ali, tão forte como nos primeiros dias.

Não conseguiram falar, as palavras doíam… Entregaram-lhe uma caixa de madeira com uma árvore esculpida na parte superior e partiram. Ela ficou na porta, com a caixa nas mãos, a vê-los seguir, sem coragem de lhes perguntar o que havia lá dentro, de quem era...

O coração batia acelerado, o medo de abrir aquela caixa impedia-a de parar de tremer. Seria a resposta que esperava há seis anos? Seriam notícias dele? Não a queria abrir… Mas queria saber… Respirou fundo. Olhou bem para a caixa, passou a mão na árvore esculpida na tampa e, como se isso pudesse amenizar o seu coração, abriu-a devagar...

(Ler:  Capítulo II )

S.R.