O tempo não
pára, não recua. Às vezes acreditamos que conseguimos fazê-lo voltar atrás,
mas, rapidamente, percebemos que o ponteiro
seguiu em frente, nós é que não.
Finalmente tinham
passado os dois dias mais longos do mundo. Eu estava na estação de São Bento à
tua espera, já não me lembrava de quando lá tinha entrado a última vez, mas
tudo parecia intacto, os sons, os cheiros, as imagens, tudo, os anos não tinham
passado ali dentro, era como uma máquina do tempo com comboios a partir e a
chegar. Seria tão bom se os comboios nos pudessem levar para momentos em vez de
lugares…
Vi o teu
comboio a surgir do túnel, quando me viste sorriste e vieste abraçar-me. Olhei
para ti à procura dum sinal teu, dum sentimento, era difícil decifrar os teus
olhos, não sabia o que sentias, se ainda era possível sentires tudo o que sentiste
por mim na adolescência. Mas havia tanto para falar depois da última conversa.
Seguimos até
ao átrio da estação, paraste a apreciar os painéis de azulejos nas paredes, nunca
os tinhas visto. Estavam ali desde 1905, o mesmo ano em que Einstein publicou a
Teoria da Relatividade, e eu que já tinha passado ali tantas vezes, percebi que
nunca tinha parado para olhar para eles, vê-los bem, como se fosse a primeira
vez. Tantas histórias naquelas paredes...
Puxaste-me o
braço a rir. Descemos
as escadas da estação de São Bento a correr às gargalhadas, nem sequer percebi
porquê, mas tu rias e eu ria. Seguimos pela Rua das Flores, o meu coração
estava mais leve, muito mais leve desde aquele Adoro-te. Mostrei-te alguns pormenores das casas mais antigas, falei-te
do Porto, do Hard Club ao passar por ele, levei-te ao Palácio da Bolsa, ficaste
encantado com os salões, disseste que no teu país não vias coisas assim, belas pelo
luxo, encontravas mais beleza na natureza e na paz, contudo percebi no teu
olhar mal entrámos no salão árabe, que ficaste encantado. Quando saímos,
descemos até à Igreja Monumento de São Francisco, não entrámos, debruçámo-nos
apenas nas varandas a apreciarmos a vista delicada e ancestral do rio Douro, era
linda, e foi preciso levar-te lá para eu ter uns momentos para a apreciar
também. Descemos os degraus até às ruas estreitas da Ribeira e seguimos o
traçado ondulado até ao rio. As ruas tinham muita vida, música, sons, mesas,
cheiros, gatos e muitas pessoas, algumas apressadas, outras não, turistas na
maior parte. Tirámos algumas fotos e atravessámos a Ponte D. Luís I para veres
a ribeira duma perspectiva diferente. Na ponte, paraste a ver os rapazes em
calções, em pleno Outono, prontos para mergulhar no rio Douro, por apenas algumas
moedas.
Desta
vez, puxei-te eu, até ao outro lado da ponte, até ao Cais de Gaia. Sentia-me
contente, tão contente, mas parecia que estava a sonhar, ainda não parecia verdade,
tu estavas ali, ao meu lado, e estávamos sozinhos na rua pela primeira vez.
Nunca tínhamos tido esta oportunidade, de passear só os dois, havia sempre
alguém conhecido por perto.
Almoçámos
ali mesmo e depois do almoço, sentámo-nos à beira-rio, junto dos barcos Rabelos.
À nossa frente o Porto, a ribeira, com as cores e a vida, que davam alma àquele
cenário que nos aconchegava o coração como um dia de Natal. Ao meu lado, sem
olhares para mim, agarraste-me a mão, como fazias há vinte e seis anos e ficaste
calado. Desta vez, eu não chorava, estava calma, e consegui sentir a tua mão a
agarrar a minha, como se fossem uma só, a mesma sensação, exactamente a mesma,
de há quase três décadas atrás. Todos estes anos agarrei a minha própria mão e
fingi que eras tu nos momentos mais difíceis, quando tinha medo, quando me
sentia sozinha, e agora, finalmente era a tua mão que segurava de novo a minha.
Duas
gaivotas pousaram perto de nós e tu riste-te. Olhaste para mim e disseste que
não tinha mudado nada nas nossas mãos, que te parecia que o tempo não tinha
passado, que não te sentias tão bem em lado nenhum como ao pé de mim. Sentias o
mesmo que eu, como se nunca tivéssemos deixado de falar nestes anos todos, nem
por um minuto. Eu sorri, afastando um pouco a minha cara da tua, a proximidade
física contigo funcionava como um íman para mim. Agarraste-me as duas mãos com
as tuas e olhaste-me nos olhos, o meu coração palpitou ao ver a profundidade
dos teus olhos nos meus, era como um feitiço, eu estava enfeitiçada. Com as
minhas mãos dentro das tuas, disseste-me, duma forma meiga e, sem tirar os
olhos dos meus, sem pestanejares, que eu tinha sido o teu primeiro amor, que
tinhas sofrido muito quando recebeste aquela carta, mas que não tinhas querido
mais ninguém durante muitos, muitos, anos, para eu nunca duvidar que ainda me
adoravas, demais, e me querias muito, mesmo muito.
Eu
fiquei calada, não conseguia falar, não de sentimentos, sempre fui assim,
falava de tudo, mas de sentimentos era tão difícil, mantive os meus olhos nos
teus apenas acenando com a cabeça.
Mas,
veio um mas, senti-me gelada de repente, eu ainda nem tinha dito nada, e tu já
estavas a dizer “Mas”… O meu peito comprimiu-se, o meu ar não saía, e tu
começaste a contar as tuas histórias, com vergonha, os teus erros, aqueles que
juraste não repetir mais. Contaste-me que traiste a tua primeira mulher com
muitas mulheres, que talvez me procurasses inconscientemente nelas, não sabias,
mas que me mantiveras sempre na tua vida como uma luz, a minha foto sempre contigo,
as nossas músicas, mas, não havia desculpa para isso, e, depois de te teres
divorciado fizeste uma promessa, que não podias falhar, não podias trair uma
mulher novamente.
Como
um calor que vem de trás e me espeta gelado como uma faca, eu percebi o que me
querias dizer, eu não era a tua mulher, era ela, aquela com quem tinhas acabado
de casar antes de voltar, era a ela que tinhas que ser fiel. Ou querias que eu esperasse
por ti? Não sei sequer porque pensaste que eu precisava de saber isso, acharias
tu que eu trairia o meu marido? Acontecesse o que acontecesse, nunca o faria,
mesmo sem ter feito promessas, claro que nunca o faria. Mas porque me falavas
nisso, porque te justificavas a mim? A quem ou como terias feito a promessa
para ser impossível de quebrar, até por mim…
Retirei
as minhas mãos das tuas, não podia esconder o que sentia, a minha cara estava
ruborizada e os meus olhos estavam brilhantes, eu não percebia o que se estava
a passar, o que ía acontecer, mas não podia ficar só a pensar… Ganhei coragem e
perguntei-te o que sentias por mim. Ficaste calado uns segundos a olhar para
mim, como se pensasses muito bem em cada uma das tuas palavras antes de as
dizeres, e quando ouvi a tua resposta, que não era possível ressuscitar os teus
sentimentos por mim, eu não sabia se podia, se devia acreditar, porque o que eu
lia nos teus olhos era o contrário do que me diziam os teus lábios.
Porque
estava eu a sentir tudo aquilo e tu não? Não era possível ressuscitar os teus
sentimentos? Seria verdade? Eu preferia acreditar que estavas a mentir para não
falhares a tua promessa, era mais fácil acreditar que também me amavas mas não
mo podias dizer porque eu era casada e tu também. Fiquei um bocado a olhar para
o outro lado do rio, sem ver, sem ouvir nada, a não ser os meus pensamentos,
disseste que não era possível ressuscitar os teus sentimentos, mas também
disseste que me adoravas demais, se me adoravas tinhas que ter sentimentos,
menos fortes mas tinhas que os ter. Tu mudaste, eu também mudei, mas o amor
verdadeiro nunca muda, não precisa de ser ressuscitado, porque ele nunca morre,
fica apenas adormecido no coração, como uma bela adormecida à espera do beijo, e
tu fechaste o teu coração por isso não o podes sentir, mas não morre, apenas
adormece, eu sei, porque assim que te vi, o meu acordou.
Eu
ainda estava perdida nos meus pensamentos quando recomeçaste a falar, e me
disseste “Eu adoro-te, muito, és especial, mas… a minha prioridade é trazer a
minha família para cá, tirá-los da guerra e da fome, e tu és indispensável para
mim, para te ajudar”
Naquele
segundo eu podia ter dito que te amo, mesmo sem forças, mas eu sabia que isso não
ia mudar nada… Tu abraçaste-me, e as lágrimas caíram-me pela cara abaixo, pelos
sentimentos que saíam por entre os buracos do meu coração, tu apertaste-me com
mais força, senti o teu coração acelerado e só quis fugir, fugir dali, fugir de
ti, fugir do Mundo, esconder-me onde não houvesse nada nem ninguém, e deixar-me
adormecer na minha tristeza simplesmente…
Quando
me acalmei, afastei-me de ti, e senti o meu coração a fechar-se como uma porta
enferrujada, sem força, a tentar proteger o pouco que sobrava.
Quando
caminhávamos para a estação sentia-me fria por dentro e por fora, tu olhaste
para mim e disseste: “Não me quero chatear contigo… Sinto-te longe… Estamos a centímetros de distância fisicamente e emocionalmente temos o Atlântico entre
nós, novamente…”
Aquela
frase deixou-me desesperada, saberias tu que eu te amo, saberias o que sinto
por dentro, saberias ou não quererias saber?… No meu desespero pedi-te “Escreve-me
uma carta, uma última carta, eu também te escrevo, mas não pode ser uma carta
de despedida, por favor, tem que ser uma carta em que dizemos um ao outro o que
nunca pudemos dizer, o que não podemos dizer agora… Não escrevemos nomes, nem
datas, e só as abrimos daqui a vinte e seis anos. Para não ficarem coisas por
dizer, caso não as possamos dizer agora, assim saberemos que quando partirmos
as deixamos ficar aqui para o outro as saber…”
Tu
olhaste para mim e disseste: “Tanto tempo? Não pode ser antes? Não quero
esperar mais vinte e seis anos…” Paraste na rua íngreme que subia a olhar para
mim e eu acedi que sim, mas disse-te “Podes abrir a minha, mas eu só abrirei a tua
quando tu me disseres que posso”
Tu
disseste que sim. Eu sentia que se não fosse assim tu não falarias. Eu podia
dizer-te tudo o que não consegui dizer agora, era pelo menos um peso que sairia
de dentro do meu peito. Agarraste-me a mão com força, apertaste-a como se me
quisesses passar uma mensagem cheia de adrenalina e, depois, largaste-a devagar,
olhando-me nos olhos.
O
caminho de volta até à estação foi sempre a subir, com a pulsação a subir, do
esforço e da tristeza. Chegámos à estação, para ires embora. Abraçaste-me
demoradamente, senti novamente o teu coração acelerado e o teu ar quente no meu
pescoço, queria beijar-te mas não podia, sentia o teu corpo a responder ao meu
duma forma tão inesperada, tão forte que me senti dominada pela vontade de
beijar os teus lábios, as nossas bocas estavam cada vez mais próximas e tu não
te afastaste de mim, a tua respiração acelerava e a minha impedia-me de
controlar os meus batimentos cardíacos, de tal forma que me sentia sufocar,
pela vontade de te beijar, pela impossibilidade de o fazer… Afastámo-nos um do
outro devagar, olhaste para mim, beijaste-me a face e entraste no comboio.
Acenaste
da janela sentado. Uns segundos depois recebi uma mensagem tua no telemóvel,
escrita na tua língua dizias “Já te ligo. Amo-te”, olhei para ti confusa, da
janela do comboio encolheste os ombros e enviaste-me outra mensagem “Desculpa,
foi erro, não era para ti…” O comboio arrancou, eu fiquei sem ar, sem chão, sem
nada, ao ver-te desaparecer no túnel da estação, de São Bento. O meu ar não
saía, o meu coração parecia que ía rasgar o peito tal era a intensidade com que
se debatia nele.
Podia
ter sido um dia perfeito… Eu presa, no centro duma porta aberta, dum lado o
passado, do outro o presente, até a realidade me ter tocado, primeiro ao de
leve, depois, com a força duma rajada de vento na porta, duma mansão vazia, do
meu coração, vazio…
Saí da estação. Gostava de ter a
capacidade de olhar para tudo como se fosse a primeira vez. Lembro-me de sair
de mão dada com a minha mãe naquela estação, do jardim nos Aliados, onde corri muitas vezes no
meio das flores, das lojas com cheiro a café e amendoins torrados, com armários
em madeira creme ou verde claro, cheias de portinhas e compartimentos, os
frascos de vidro, os sacos de rafia no chão cheios de feijões onde eu enterrava
as mãos, lembro-me da Rua de Santa Catarina, do café estreitinho onde a minha
mãe me comprava o bolo de arroz, lembro-me de descer a rua 31 de Janeiro até
São Bento, a Torre dos Clérigos no meu horizonte, descer aquela rua era um
momento especial, uma montanha russa sem cintos nem travões, lembro-me do Porto
que eu via com olhos de criança, mas tudo muda com o tempo, principalmente nós
próprios, não há como revertê-lo, ele avança e ficam apenas as memórias.
A
minha porta tinha-se fechado e atirei a chave para o fundo do oceano, jamais
poderia ser recuperada, os meus sentimentos ficarão assim intactos para sempre
num sítio distante onde não poderei mais chegar… É melhor para mim, para todos.
Agora só me restava escrever-te uma última vez e esperar pela tua carta, a nossa última carta.
Sandra Reis