Este blogue é um ponto de encontro com amigos desconhecidos que se reconhecem nas palavras e nos gestos, aqueles por vezes tão comuns que deixamos de reparar, até alguém nos voltar a falar deles, como se fosse a primeira vez.

Música

17 de novembro de 2020

Volta para Mim - II

Ler também: Capítulo I
 


“Nem todas as guerras do Mundo são para confrontar o inimigo, às vezes temos que nos enfrentar a nós próprios, à verdade dentro de nós, perceber se queremos ganhar ou perder essa guerra, para, finalmente, voltarmos a ter paz”

S.R.

 

Mas não conseguiu olhar e voltou a fechar… Que mais precisava ela para ter coragem? Era tão difícil explicar a quem nunca sentiu o mesmo, como era deitar-se todos os dias na cama e chorar até adormecer, sozinha, sem ele, sem uma verdadeira despedida, um último abraço, um último beijo. Se o amor eterno era assim, doía demais…

Deitou-se agarrada à caixa, como se ali estivesse a última palavra dele, o último abraço, o último beijo, como se pudesse prolongar aquela sensação. Pelo menos mais uns minutos… Pelo menos mais uns minutos a acreditar que ele podia estar vivo, em algum lado, a pensar nela, à espera dela…

Fechou os olhos, as lágrimas corriam, como nascentes a inundar caudais de rios atormentados há anos, até àquele mar onde tudo continuava igual… Sem um porto seguro para se aconchegar, apenas uma âncora a puxá-la para o fundo das águas escuras, iluminadas apenas por segundos pelos relâmpagos que caíam, e ondas tortuosas que a faziam girar e girar, sem a deixarem encontrar um caminho seguro, sem a deixarem seguir em frente…

Uns minutos depois, as lágrimas pararam e sentia o peito mais leve, sentou-se, limpou as lágrimas e, sem pensar duas vezes, levantou a tampa com a árvore esculpida.

Assim que a tampa abriu, ela ficou sem palavras, sem ar para emitir qualquer tipo de som, incapaz de fazer vibrar qualquer corda vocal… A caixa tinha sido esculpida por ele… Agora ela percebia a árvore na tampa, ao ver no interior a mesma frase que no bilhete… ”Aconteça o que acontecer, o que nos une é eterno”, ali esculpida… A árvore na tampa, era igual à que estava no jardim dela há centenas de anos… A mesma onde um dia ela se escondeu dele, e ele apareceu de repente, sem sorrir, com aquele olhar sério nos olhos dela que a deixou sem fôlego, a encostou devagar contra o tronco, e a beijou, pela primeira vez…

Ele tinha feito uma caixa para ela… Mas quando? E porque lha davam agora?

As respostas difíceis talvez estivessem lá dentro… Havia uma pulseira em cima dum papel branco. Ela pegou na pulseira e enfiou-a no pulso, tinha minúsculas flores azuis secas e pequeninos búzios entrançados num fio, de onde seria? Teria algum significado?... Pegou no papel branco e virou-o, era uma foto…

Ao ver aquela foto sentiu um aperto no peito, aquela imagem era intensa demais… Era a primeira vez que via uma foto deles, juntos. Estavam no alpendre da casa dele, o Pipo ainda bebé, no meio deles ao colo.

Lembrava-se tão bem daquele dia, agora a memória ainda mais viva com aquela foto, parecia ontem… O pai a entrar em casa de cão ao colo, ela incrédula pegou naquela bolinha de pêlo, abraçou o pai e saiu a correr feliz para a casa dele, só duas casas ao lado, para lho mostrar, até escolheram o nome juntos, Pipo, em honra à enorme barriga redondinha. Só agora se recordava do pai dele tirar-lhes uma foto... Se soubesse que três anos depois ele seria chamado… Talvez pudesse ter impedido…

O Pipo, estava deitado ao lado dela no sofá a observá-la como se lhe pudesse ler os pensamentos, estava quase a fazer uma década desde a foto dos três. Será que o Pipo ainda se lembrava dele? Não o via há seis anos, mas dizem que os cães nunca se esquecem… Como ela gostaria de saber…

No fundo da caixa havia uma carta. Pousou a foto à frente, na mesinha, e pegou na carta, como se pesasse toneladas. Agarrou-a com as mãos trémulas e abriu-a, datava de há dois anos já...:

 

Minha querida, minha adorada, amor da minha vida:

Não imaginas o que aconteceu. Quando tudo parecia estar a acabar finalmente e eu já contava os minutos para te voltar a ver, agarrar a tua mão, beijar-te… Fizeram-nos uma emboscada de noite e fomos apanhados. Somos prisioneiros de guerra há três anos e só hoje consegui uma caneta. Deves pensar que morri, e sem ti é como se estivesse morto… penso em ti todos os minutos, quem me dera poder fugir e ir ter contigo. Tenho medo que tenhas desistido de mim…

Não sei o que me irá acontecer aqui. Gostava de fugir mas se fugisse era certo que nunca mais te voltaria a ver… Eles não perdoam… Espero que me perdoes. Tinha esperança que o nosso País conseguisse um acordo e nos viesse buscar. Mas já passaram 3 anos… Eles não estão a cumprir a Convenção de Genebra e fazem tudo para conseguirem informações, torturam e já mataram alguns colegas meus….

Como temos que fazer tudo o que mandam, principalmente construção, guardei alguns pedaços de madeira e fiz uma caixa para ti com a faca que uso para comer.

Guardo a nossa foto comigo, os meus pais deram-ma no dia que vim para cá, mas aqui não é seguro tê-la comigo e guardei-a na caixa, debaixo do chão… A pulseira, achei que era feita para ti, adoras a Natureza e o mar… Espero dar-ta um dia. São crianças que as fazem junto às praias, pedi essa para ti, e a menina, talvez de seis anos deu-ma com um enorme sorriso, eu dei-lhe todas as bolachas que tinha no bolso.

Aqui as crianças fazem passam fome… A guerra destrói tudo, incluindo as pessoas, as famílias… É horrível…

Pergunto-me todos os dias como estará o Pipo, os meus pais, os teus pais? E como estarás tu?... Quero tanto que estejas bem…

Espero voltar a ver-te um dia, nem que seja na próxima vida, ou em todas elas, o meu coração será eternamente teu. A cada segundo és só tu que me fazes aguentar este pesadelo. O teu sorriso é a minha força.

Não posso escrever mais. Não tenho mais papel…

Teu eternamente

P.S. - Cuida dessa árvore da caixa, da mesma forma fazias com a nossa árvore, quando queríamos manter os nossos segredos seguros.

 

(Continua...)

 

S.R.