Volta para Mim (I, II, III e IV)
“Se estiveres destinado a voltar para mim, tu voltarás.”
S.R.
Ainda atordoada pelo som do telefone que continuava a tocar, pousou a mão preocupada e levantou o auscultador…
- Estou?...
- Desculpa ligar tão tarde. Acabei de receber novidades. – era o militar com quem tinha estado de tarde…
- Aconteceu alguma coisa?... – ela sentia o coração a debater-se contra o peito como um touro bravo.
- Depois de falarmos esta tarde, liguei para o Oficial que está a par das negociações e ele acabou de me ligar de volta... Começaram o resgate dos prisioneiros hoje. Já estão num avião, a voltar para casa. Não sei quantos são, não sei mais nada. Só que está tudo a ser feito agora durante a noite e que demoraram mais porque a maioria não tem documentos nenhuns… Nem me acredito que consegui… – o silêncio do outro lado da linha era longo já – Estás bem?
- Desculpa… não sei o que sentir ou pensar…
- Eu sei… Eu sinto que tudo o que passei nestes dois anos valeu a pena… Eles estão a voltar para casa... Este resgate deixará de ser secreto em poucas horas e eu também vou poder voltar a casa. Abraçar a minha família… - a voz dele começou a soluçar, estava muito emocionado - Desculpa… Tem sido tão difícil… nem a minha família sabe que estou vivo ainda… e finalmente, vou voltar para casa…
- Não sabem?... Mas disseste-me a mim…
- Eu tinha que cumprir a promessa que lhe fiz, tinha que entregar a caixa... A minha família não conseguiria manter segredo e isso podia comprometer a operação de resgate, fui avisado para me manter escondido, que seria por poucos dias. Ele salvou-me a vida, espero ter salvo a dele também… Vamos ter fé.
- Espero que sejas condecorado pela tua coragem. Graças a ti estes homens foram libertados. Mesmo que ele não esteja entre eles... Obrigada
- Não, não tens que agradecer – disse ele emocionado - Vamos esperar, quando eu souber mais alguma coisa ligo-te. Tenta descansar. Boa noite… – disse ele com uma voz mais leve.
- Obrigada. Boa noite… - pousou o auscultador a tremer.
As pernas dela tremiam, sentia-se a perder a força, deixou-se escorregar até ao chão e começou a chorar. Não sabia que ainda tinha lágrimas, chorava de medo, de alegria e de pavor que ele não estivesse naquele avião… O Pipo correu para ela, pousou o focinho no colo, de olhar cheio de empatia posto nela. Ela afagou-o enquanto se acalmava. Ela sabia que era impossível dormir agora. Foi caminhar um pouco na rua com o Pipo, apanhar ar, respirar o cheiro da noite, dos grilos, da terra, das flores que esperam o primeiro raio de sol da manhã para abrirem as pétalas de novo.
Uma hora depois estava de regresso a casa, já passava da 1h da manhã, mas ligou o rádio na esperança de ouvir uma notícia sobre os militares, mas nada… Acabou por adormecer assim no sofá.
Eram 7h da manhã. O Pipo ladrou e ela acordou, estava sentado junto à porta da entrada com o rabo a abanar impaciente, um latido, um ladrar curto, fizeram-na perceber que era alguém conhecido. Àquela hora, talvez fosse a vizinha a passear o cão… Abriu a porta, não havia ninguém, o Pipo saiu para o jardim à frente dela. Do outro lado, alguém atrás da árvore mexia nela, ainda estava um pouco escuro, mas via a uns braços e a casca do esconderijo no chão… Assustada, sentiu-se presa ao chão, o Pipo voltou a latir e a cara atrás do tronco revelou-se, fixando-a sem se mexer também, como se fotografasse com os olhos aquele momento, as lindas feições dela com o amanhecer a encher o céu de tons amarelos e raios de luz. Era ele… Ela tapou a boca com as mãos, incrédula, as lágrimas escorreram-lhe dos olhos sem sequer os pestanejar. O Pipo correu para ele abanando o dorso em vez da cauda, latia num choro comovente, como uma criança a chorar pelo pai… Ele pegou-lhe ao colo e abraçou-o, de lágrimas no rosto também.
Estaria ela a sonhar? Os raios de sol entre os ramos da árvore e ele, ali, à frente dela… Parecia um sonho. Ela continuava petrificada. Ele pousou o Pipo e correu para ela, abraçou-a com tanta força que ela percebeu que estava acordada, era verdade… As lágrimas caíam na cara dos dois, o tempo parou naquele abraço. Ele olhou para ela, agarrou-lhe as faces, limpou-lhe as lágrimas com as mãos e sorriu-lhe. Pousou os lábios devagar na face dela, no queixo, no pescoço, no canto da boca… como se estivessem prestes a dar o primeiro beijo... beijou-a no outro canto da boca e sentiu-a a perder as forças, rosada e de olhos fechados. Como se precisasse de mais coragem, beijou-lhe o lábio de cima, depois o de baixo, até que os lábios se encaixaram, e eles sentiram-se completos, inteiros, novamente, como duas peças dum puzzle perdidas e encontradas, como se fossem uma só alma, um só coração.
Quando os lábios se separaram tinha passado uma espécie de eternidade, sem espaço e sem tempo, onde os ponteiros dos relógios não sabiam para que lado seguir, e ela não sabia se o seu coração batia depressa demais ou se tinha parado….
Como podia um simples beijo completá-los de maneira tão perfeita, intensa, genuína, e ao mesmo tempo deixá-los insatisfeitos e ansiosos por mais? Como podia alguém fazer um beijo durar para sempre?
- Eu disse-te que voltava – disse ele sorrindo.
Agarrou-lhe a mão e deu-lhe algo. Tal como há seis anos atrás….
- Está aqui a minha promessa – disse-lhe ele
Ela olhou para a mão e viu a noz. Sorriu, e desatou o cordel, não imaginava o que seria. Quando a abriu havia papel de seda, ele pegou no papel minúsculo e olhando-a nos olhos, ajoelhou-se.
- Queres ficar ao meu lado para sempre? Casar comigo, ter filhos, netos, envelhecer comigo? Desejei este momento desde o dia que parti… - e abriu o papel de seda, onde estava um anel, que brilhava como a luz do amanhecer.
- Claro que quero… Claro que quero… – disse ela sorrindo e chorando.
Pôs-lhe o anel no dedo, não tinha mudado nem um milímetro nestes anos. Beijou-a. Finalmente, ele cumpria a sua promessa de há seis anos, e selava uma nova promessa, uma promessa de amor completo e dedicado para sempre. Um amor que os magnetizava no corpo, no pensamento, no coração...
E foi assim que ele voltou para ela e ela voltou para ele. Tiveram filhos, netos, muitos cabelos brancos e imensas histórias para contar. Junto à árvore fizeram um canteiro em memória do Pipo, que amaram e cuidaram até ir para o Céu dos cães. No tronco da árvore, no esconderijo, guardam-se agora memórias importantes, para que nunca fiquem esquecidas. E, como todas as famílias, nos momentos bons e menos bons, estiveram sempre ao lado um do outro, e… Foram felizes para sempre.
Há quem procure a vida toda pela oportunidade de voltar a encontrar, abraçar, beijar a primeira pessoa que amou. O amor verdadeiro é eterno, aconteça o que acontecer, e eles seriam para sempre gratos pela oportunidade de se voltarem a encontrar. E, como ele lhe tinha escrito naquele bilhete há muitos, muitos anos atrás, eternizou-o no banco de jardim onde eles se sentaram todos os dias da vida deles, numa placa de metal, onde se pode ler ainda hoje:
“Aconteça o que acontecer, o que nos une é eterno.”
FIM